25 de set. de 2008

VETOR


Quando acordo já sei para onde vou, sei o motivo, conheço o caminho e as pessoas que lá estarão... Mas não sei se é realmente necessário ir, se os motivos que me movem são de fato importantes, nem consigo imaginar o que poderia acontecer se eu não fosse para onde sempre vou. Reconheço a voz do outro lado da linha, sei quem está falando, amigo de longa data... Infelizmente não entendo o que ele está dizendo, o sentido da mensagem foge à minha compreensão, não estou conversando mais com o amigo de ontem, é ele quem está falando comigo, e é hoje.
Já deveria ser amanhã, para eu ser tão velho quanto dizem que já sou, eu sei de tudo isso, não sou louco... Mas continua sendo ontem, não consigo provar que já deixei de ser jovem, não me importaria de fingir, pelo menos não receberia mais doses cavalares de drogas pelo ouvido. Gostaria de ter uma companhia para caminhar, eu sei que cruzar os dedos não faz alguém aparecer, sei também que cada pessoa segue uma trilha própria em um confuso labirinto... Dizem que há um labirinto, não vejo nenhuma divisória ou parede, por isso fico admirando os passos alheios e esqueço de andar.
Dizem que sou alguém, pois tenho um nome, documentos e um rosto... Sou alguém que sabe fazer certas coisas, o que sei fazer não me faz ser alguém, mas já vi reconhecerem alguém pelo que sabia fazer, se alguém não sabe fazer nada dizem que nem chega a ser alguém, eu sei. Quem sabe eu seja um vetor, uma forma de vida que carrega e transmite um agente infectante. Minha psicóloga, os sociólogos da cidade e os filósofos do mundo não sabem, ainda, se o que estou disseminando é benéfico, inútil ou perigoso, não souberam me dizer.

12 de set. de 2008

FABRICANDO DESTINOS


Alguém se levantou às oito da manhã do dia dezenove de novembro, bocejou longamente e foi direto para o banheiro. Ao se olhar no acusador ele constatou que não havia necessidade de fazer a barba, também viu uma pequena espinha no alto da testa, quase onde nasciam seus cabelos escuros, mas nada grave. Estava ligeiramente atrasado, pelo menos era isso que indicava seu algoz, marcando oito horas e oito minutos. Rapidamente ele vestiu suas decências, abotoou seu emprego, pôs suas visões nos olhos, recolocou o noivado no anelar e saiu.
Ao mesmo tempo, do outro lado da cidade, alguém guiava na auto-estrada. Cabelo impecável, unhas bem feitas e pintadas de vermelho, de suas orelhas pendiam pequenos e belos satélites, naquela manhã ela usava seu espírito preto, leve e sensual, o que mais gostava. Quando estava na metade do caminho, ela ouviu o imortal tocar, sem pestanejar inclinou-se para trás e, com uma das mãos, pegou sua vida no banco traseiro, abriu-a, retirou o aparelho e atendeu a inconveniente ligação. Era seu chefe, precisavam urgentemente dela na cruz, automaticamente ela acelerou.
As oito e quinze do dia dezenove de novembro, um jovem apressado atravessava a rua em direção ao seu novo emprego, e uma mulher preocupada voava baixo pela auto-estrada. Ele girava o noivado no dedo, costumava fazer isso quando estava nervoso, ela ouvia o imortal tocar pela segunda vez, precisava atender... Um instante, um acidente, o algoz do jovem havia feito seu trabalho, seus ponteiros pararam às oito dezesseis, a mulher acabou morrendo pela cruz. No asfalto morno da estrada restaram, lado a lado, um noivado partido e uma vida rasgada.

11 de ago. de 2008

POR AQUI

Por aqui não sorriem de graça, logo estendem o chapéu, ou fazem tilintar as moedas que se encontram em suas canecas. Tudo é perto aqui, mesmo assim ninguém caminha tranqüilo, existe pressa, ou um estranho receio de que as distâncias aumentem se os passos não forem largos. Por aqui existem palavras, nascem frases, surgem conversas e inventam-se histórias, o mundano é fantástico. Os prédios crescem para os lados por aqui, as plantas para cima, e as pessoas para dentro, não canso de me perguntar se alguma dessas coisas chegará a ser grande um dia.

Por aqui o sol nasce no leste, lê-se da esquerda para a direita, as faixas de pedestres são brancas, e os pedestres também são brancos, enfim, tudo de acordo. Tudo que é velho, quando contado por um novo, é novidade por aqui. Há música por todo o lado aqui, e música de um lado só também, como uma invenção exclusiva! Discos sem um lado B. Por aqui, é possível ver o último dos montes mesmo sem olhar para cima. Aqui, o início e o fim são tão próximos que, o espaço existente entre eles, não pode ser determinado por nenhum forasteiro.

Dizem por aí que, por aqui, pouca coisa brilha e nada soa bem... Se prestassem bem atenção veriam que isso não é verdade. Há diamantes por aqui, um ou outro é verdade, mas há, também tem ouro de tolo, muito sem dúvida, mas tem. Por aqui, pelos cantos, se resmunga de uma forma que só é entendida por aqui - código inteligente - e no centro tentam explicar, para quem vem de fora dessa figura geométrica, o que foi dito nos cantos. Por aqui, muito se vê e sente-se muito, pouco se lê e entende-se pouco.

23 de jul. de 2008

HISTÓRIA DE PAPEL

Eu não sabia se colocava um ponto ou uma vírgula naquela história. Acabei optando pelo ponto, percebi que não havia mais como continuar. Logo depois de ter decretado o fim me pus a rever o breve romance, relembrá-lo, revisá-lo. As reticências estavam em seus devidos lugares, escorregando no final de frases que deveriam terminar... Algumas perguntas pareciam ter sido feitas em ocasiões inoportunas... Mas, afinal, uma boa história deve mexer com o leitor, instigá-lo, não é mesmo? Decidi não alterar as interrogações.

Não demorei muito para chegar às reviravoltas. Aqueles momentos cheios de surpresas, sentenças extensas, mas que dão a impressão de não ocuparem muito espaço, instantes de impacto, capazes de mudar os planos, as teorias, de embaralhar os pensamentos. Foi aí que notei a falta de clareza, havia compreendido o motivo de ter optado pelo ponto final. Convenci-me de que o basta havia entrado na hora certa, já não existia mais nada, só confusão. Todo o brilhantismo, a criatividade e o amor que pontuaram o início da história haviam desaparecido.

O que era para ser uma ficção intensa e envolvente nunca deixou de ser uma história. Não foi fácil desenterrar da memória as frases inacabadas, as perguntas cortantes nos momentos complicados, e os diversos pontos que foram, aos poucos, sendo semeados pelo romance. Procurar e encontrar os motivos que geraram o fim, revendo página por página, lembrando situação por situação, é uma tarefa árdua e demorada, mas é assim que se chega ao final entendendo-o. O romance não estava no papel, era escrito por nós, com sentimentos vermelhos, sobre nossas alvas vidas.

17 de jun. de 2008

O BONECO

O trem já estava na metade do caminho, havia passado pelas mais belas paisagens e lutado com impiedosas tempestades. A vida da moça, que estava sentada displicentemente próxima à janela do quinto vagão, não havia andado tanto quanto a locomotiva. Ela mudava constantemente as pernas esguias de posição, suas lembranças misturavam-se com seus e planos, a morte chegava, era posta para fora e dava lugar ao desejo de mudar de cidade, sorrisos espontâneos eram distribuídos à esmo, sendo rapidamente substituídos por lábios apertados. Era quase possível perceber sua fragilidade e incerteza escorrendo pelos finos fios dos cabelos claros que se ajeitavam naturalmente.
Quem sabe, se estivesse em um ônibus, não estaria sozinha, se parasse de refletir tanto, não perderia tempo com tais suposições. O trem se aproximava de mais uma estação, e ela já havia perdido a conta de quantas vezes havia parado, nem sabia mais se isso era bom ou ruim, desistira de pensar nisso também. Há poucos metros da plataforma de embarque da estação, a jovem vislumbrou uma aglomeração de pessoas. Ajeitou-se melhor no assento a fim de descobrir qual era o motivo de tal reunião atípica. Aos poucos, conseguiu ver que, no meio da multidão, a maioria crianças, um senhor dava vida a um amável boneco.
A moça ficou maravilhada com a cena, as mãos e os dedos do bonequeiro se moviam de uma forma muito esquisita, torta, mas o pequeno boneco parecia estar vivo e dançava graciosamente para a platéia. O espetáculo parecia ter sido preparado especialmente para aquele momento, como se fosse imprescindível para dissipar a leve, porém incômoda, angústia que ela trazia no peito. A apresentação parecia estar longe do fim e o trem, que ela nem notara ter parado, voltava a movimentar-se para continuar a viagem. O artista percebeu que os olhos castanhos da jovem estavam vidrados nos movimentos do homenzinho de madeira que conduzia, e resolveu homenageá-la, mexeu os fios que segurava com delicadeza, e seu boneco acenou tristemente para ela.


Ela sorriu e teve a sensação de que sua trajetória estava sendo escrita pela mão inconstante de um escritor adormecido e distante...

3 de jun. de 2008

A PEÇA

As cortinas se abriram, o ator estava visivelmente nervoso, mesmo sendo excelente na arte de interpretar e já ter perdido a conta de quantas vezes fora aplaudido de pé. Era a mesma peça, o mesmo personagem e a platéia não havia mudado muito, apenas uma ou duas pessoas novas, sem rosto. O palco parecia ondular sob seus pés, causando-lhe um pequeno desconforto, mas ele manteve-se firme, fixou o olhar na multidão que assomava a sua frente e reuniu forças para encarnar, mais uma vez, o inesquecível Rei de Copas. Seus gestos exalavam soberba e tranqüilidade, e com as famosas risadas histéricas, alternadas com crises agudas de tristeza, o Rei de Copas, como sempre, foi cativando aos poucos seu fiel público.

Na primeira fila, sentada exatamente no mesmo lugar, estava a bela escultora de cabelos negros e brilhantes com quem o ator sempre quis conversar, mas jamais conseguira. Logo ao lado da artista estava uma mulher de olhar distante, seus traços transmitiam uma imensa fragilidade, dava a impressão de ser a mãe de todas as pessoas do mundo. Uma das cadeiras estava vazia, era muito estranho haver um lugar sobrando na primeira fila de tão grandioso espetáculo, mas estava lá, um imenso vazio. As demais poltronas do lugar estavam todas ocupadas por pessoas bem vestidas, mas que não possuíam face, o ator não se importava com tal detalhe, desde que ouvisse o som confortante dos aplausos, com os quais estava tão acostumado.

O Rei de Copas condenou outro camponês à forca e esboçou seu último sorriso de satisfação, e, após um breve silêncio, o público rompeu em aplausos. Era possível ver nos olhos do ator o êxtase, a sensação de ter sido perfeito, de ter experimentado a melhor droga que poderia existir, estavam quase todos pé, produzindo aquela explosão sonora de que ecoava pela gigantesca sala... Quase todos, em meio ao seu torpor, o ator notou que havia um homem naquele lugar vazio, e o espectador que lá estava lançava-lhe um olhar de desprezo. Como que por encanto a platéia toda sumiu, as palmas cessaram, o silêncio e a solidão retornaram, aquele homem que não aplaudiu tinha o rosto idêntico ao do ator, que caiu de joelhos, fracassado, no meio do palco.

29 de abr. de 2008

A NOITE GLACIAL E O MAR VOADOR

Não basta abrir os olhos para ver além da face de vidro, caminhar pelos planos não é o bastante, perguntar não resolve a questão, argumentos são insuficientes para se ganhar o coração. O vizinho nunca serei eu, o ateu não sabe mais quem é alguém, os relógios não estão certos, mas continuam correndo, os escuros tornam-se mais atraentes quando sorriem, as almas pedem para serem esquecidas, não querem incomodar. Os astros se organizam no céu, no espaço, no infinito, na vida, no destino, eles mexem em tudo e não modificam nada.

Os dias não conhecem o caminho de volta, na noite seguinte você esquecerá tudo de novo? Ensine as crianças a subir nas árvores, prepare-se para correr, acredite que qualquer um pode morrer, há raízes por todos os lados, algarismos nos sonhos, exatidão na união. A luz do sol petrifica os motivos, eu dou bom dia de madrugada, tudo acabou terminando durante o carnaval, um de nós quis ser os dois, ninguém conseguiu ser um sequer. O complicado anda entorpecendo, paralisando desejos, é o mais novo ditador de uma nação lendária.

O vento levará os balões daqui até aí, se eles chegarem não haverá por que ficar parado, deixar o abstrato de lado, o telefone vai parar no lago e as labaredas jantarão dinheiro. Você está falando mas eu só ouço a minha voz, eu estou jurando mas você não está sabendo... Vamos estender o mapa sobre a mesa nova, curar nossa cegueira, definir as rotas, criar os rumos, imaginar o caminho, levantar da cama e andar juntos até cansarmos, apenas para podermos voltar juntos de onde viemos. Temos que parar de olhar ao redor, de tirar o sentido das coisas que falamos e escrevemos, essa foi a última vez. Nosso amanhã terá sol e chuva, são distantes e diferentes, mas estarão unidos.

27 de abr. de 2008

IMAGENS

O ônibus parou lentamente, pai e filha desceram na parada de uma pequena praça, traziam consigo apenas algumas malas e expectativas. A imagem do ônibus levantando poeira e se afastando jamais sairá da memória de Miguel, as flores e os balanços amarelos daquela singela e acolhedora praça encantarão para sempre a pequena Bárbara. O pai era um homem esbelto, de cabelos escuros desarrumados e olhar incisivo, a filha parecia um menino, enfiada em calças jeans surradas e usando um boné vermelho colocado de forma displiscente. Estavam em uma nova cidade, os olhos de Bárbara brilhavam, ela queria saber tudo, Miguel pensava no que iam fazer, desejava saber todas as respostas, para todos os problemas.

O sol das duas da tarde estava forte, e os dois procuravam uma sombra. Ao ver o suor escorrer pelo rosto de seu pai, Bárbara tirou o boné e ofereceu-o, Miguel sorriu, abaixou-se, arrumou os curtos cabelos da filha e beijou-a, enquanto recolocava o boné em sua cabeça. Pai e filha não demoraram muito para encontrar um banco protegido por dois imponentes ipês. O banco ficava de frente para a estátua de um importante general, que lutou pelo império brasileiro, para Bárbara era um homem esquisito usando roupas feias, para Miguel, alguém que ele jamais conseguiria ser. A filha pediu ao pai quem era o homem montado no cavalo, ele respondeu que foi um grande homem, que defendeu a liberdade, e que existiam mais desses hoje em dia, só que não ganhavam mais estátuas.

Miguel retirou sua preciosa câmera fotográfica e preparou-a para sua filha. Gostava de vê-la tendo contato com a fotografia, acreditava que ela seria uma fotógrafa muito melhor do que ele. Alguns minutos depois entregou a nikon nas mãos magrinhas de Bárbara e pediu a ela que fotografasse o herói que ali estava. Sem pestanejar, a pequena menina empunhou a máquina, fechou o olho, umedeceu os lábios com a língua, procurou o melhor ângulo e fotografou com a perfeição de uma criança. Bárbara acabou se tornando uma grande fotógrafa, conseguiu algumas das melhores imagens da guerra do golfo, mas a foto que mais gosta é uma de seu pai, de jaqueta marrom e calças empoeiradas, tirada em uma pequena praça de balanços amarelos.

26 de mar. de 2008

O SER E O SER

Eu vi corpos artificiais e vazios receberem um punhado de órgãos e serem animados com descargas elétricas. Eles conseguiam ficar de pé, se movimentavam, eram capazes de se manter vivos, respiravam, comiam, dormiam, falavam, escutavam, funcionavam perfeitamente bem. Seus criadores não tiravam os olhos dos gráficos que coloriam as telas dos computadores, conseguiam monitorar o funcionamento de suas criaturas sem olhar para elas, baseavam-se nos números fornecidos pelos programas.

Pouco tempo depois os vi espalhados pelas ruas, em meio às pessoas, caminhavam pelas calçadas, dirigiam automóveis, trabalhavam, estudavam. Menos de duas décadas depois já era difícil saber quem era natural e quem havia saído de um laboratório. Não se sabia exatamente o motivo desse fenômeno, alguns achavam que a capacidade de aprendizado das criaturas desenvolveu-se rápido, outros, dentre eles eu, diziam que a raça humana havia se tornado apática e funcional, assemelhando-se às criaturas.

Algumas pessoas afirmavam serem capazes de notar a diferença entre humanos naturais e humanos artificiais. Elas diziam que os humanos naturais possuíam algo no olhar, uma espécie de brilho, que ia além da vida biológica. Até então, a única maneira de saber quem era natural se dava por meio de testes que analisavam a degradação do tecido cerebral. Pessoas apontadas por esses “sensitivos” como sendo naturais foram submetidas aos testes, algumas delas foram diagnosticadas como artificiais. A maioria acreditou na ciência, eu fui um dos que acreditou nas pessoas, fui acusado de ser artificial e jogado numa cela, como sendo uma falha.

13 de mar. de 2008

TEMPESTADES

Continue caçando suas tempestades, enfrente os raios, sinta a chuva, olhe bem para as nuvens escuras que pairam sobre você. Elas não duram para sempre, são apenas alguns instantes de anormalidade, é o momento em que não faz tempo bom, é a chance de escapar do trivial. Torne-se um louco, desenvolva uma surdez, não ouça o que dizem, não faça o que fazem. Eles fogem, você enfrenta, eles ignoram, você quer saber, eles permanecem secos, você se encharca, eles não morrem, você vive.

Pise na lua, caminhe no ar, voe pelas estrelas. Vista o traje de astronauta, faça a contagem regressiva do foguete, prepare-se para aterrissar. Construa o seu mundo, este não basta, ele não está certo, não é um lugar justo. Você é o lunático, um sonhador desatento, alguém que não tem chance nessa realidade, precisa se salvar! Continue sendo o que sempre foi, não fuja do abrigo, não esqueça do autismo, conteste o que vê e ouve, é sua única chance.

Benjamin Franklin e sua pipa enfrentaram a tempestade, desafiaram as ameaçadoras nuvens negras, domaram os raios. Santos Dumont embarcou em seu 14 bis e provou que o homem podia voar. A bordo do Sputnik, Yuri Gagarin foi além do horizonte, viajou pelas estrelas, o céu deixou de ser o limite. No dia vinte de julho de 1969, Neil Armstrong anunciou estar caminhando pela humanidade, neste momento ele pisava no solo arenoso da Lua pela primeira vez. Estes homens existiram no mundo de qualquer um, enfrentaram as tempestades, promoveram as mudanças no tempo.

6 de mar. de 2008

VISITANDO O INTERIOR

Passava das duas da manhã quando bateram à porta da casa número vinte e dois da Rua Marcelo A. de Moura.

- Nossa! Eu jamais poderia imaginar que você me faria uma visita a essa hora da madrugada! Que ótima surpresa! Entre.

- Estava passando por aqui e, como tinha certeza de que estaria acordado, resolvi dar uma passada, espero não estar incomodando...

- Claro que não... Mas sente-se, vou pegar um café.

- Você andou mudando algumas coisas por aqui não foi? Olha, com sinceridade, achei um tanto esquisita essa nova decoração.

- Pronto, aqui está o café... Não mudei nada, está tudo exatamente mesmo lugar. A última vez que você esteve aqui era dia e estava sentada em outro lugar, quem sabe esses fatores devem ter te dado essa falsa impressão.

- Mas está muito diferente mesmo, sem brincadeira!

- Impressão sua... Como está o tempo? Muito frio lá fora?

- Não, está bem agradável.

- Ah! Eu não costumo sair muito de casa, por isso sempre acho que faz frio lá fora...

- Você deveria sair mais.

- Quem sabe... Mas eu já desisti, lá fora não parece ter nada interessante, aqui dentro posso fazer o que quiser, criar coisas do meu interesse.

- Sei... Nesses papéis aí?

- Isso mesmo, com a ajuda de uma caneta.

- Eu não entendo! Bom, só passei para ver se você estava bem e encontrei uma nova decoração e você dizendo que não mudou nada de lugar... Obrigada pelo café.

- Está tudo no mesmo lugar, você viu a sala de um ângulo diferente e com outra iluminação, sei que pode parecer difícil de assimilar isso, mas continua tudo igual.

- Você mudou... Bem, boa noite.

- Para você também, volte sempre!

Passava das nove da manhã quando abriram a porta da casa de número vinte e dois da Rua Marcelo A. de Moura.

26 de fev. de 2008

DOIS

No final da tarde, antes do fim daquela vida antiga, dois corações palpitavam quase no mesmo compasso, duas palavras foram pronunciadas e ouvidas antes de se perderem pelo ar. Uma morte sussurrou seu nome, uma nova vida surgiu e gritou para a realidade. Descobriram que o sol beijava tudo com sua luz, daquele momento em diante o medo seria tratado como lenda. Aquilo acabaria apenas junto com o mundo, não poderia ter outro fim tal sentimento. Naquele instante o universo ganhava um irmão, aquela sensação também era infinita.

Os olhares se cruzavam e pulverizavam os seres ao redor, não havia chão ou paredes, ambos flutuavam em meio ao nada. Não sabiam o que faziam, as palavras eram criadas sem qualquer intenção, totalmente desprovidas de razão, falavam consigo mesmos, já que não estavam mais separados. Seus corpos se tornaram fantasmas, intocáveis, indefesos, havia apenas a consciência, incapaz de discernir realidade de sonho. Os relógios continuavam funcionando, mas o tempo havia parado.

Nomes e cores perderam o sentido, suas crenças se unificaram, não precisaram de explicações durante aquela breve eternidade. Cada um de seus sentidos parecia ter sido forjado especialmente para aquele momento, perceberam qual era o motivo de estarem vivos, sentiam-se completos finalmente. Nada estava escrito, os dois caminharam até lá, sentaram-se debaixo da mesma árvore, pensavam as mesmas coisas, sentiam o mesmo, falaram sério, disseram a verdade.

15 de fev. de 2008

VALORES INCONSCIENTES

A casa está em péssimas condições, situada não se sabe bem onde... Falo daqueles sonhos que não são lembrados, me refiro àqueles que vivem sem estarem despertos. Ela está lá, ainda de pé, e assim deve permanecer, pois abriga uma fortuna. Incontáveis quilos de dinheiro, de todas as partes do mundo, cobrem o chão, sobem pelas paredes desgastadas. Nesse mesmo chão repousa um casal, eles se olham fixamente, não perceberam que lhes faltam os braços e as pernas, estão juntos e podem admirar as íris. Começa a chover, o telefone toca, o dinheiro não se move.

O negociante de ossos aparecerá, entrará usando uma capa que lhe proporciona um corpo e seu chapéu que lhe confere um rosto. Quando começar a chover ele abrirá a porta de madeira, arrastará para dentro sua caixa repleta de restos mortais... Crânio destruído por um projétil, aquela ossada com perfurações nos punhos, pés e peito. O negociante não demorará, verá o telefone cheio de poeira em cima de uma mesa e dois esqueletos incompletos no chão, pegará duas moedas, abrirá sua caixa e voltará pra o lugar de onde não gostaria de ter vindo.

Sozinho em sua mansão o milionário carregou o trinta e oito cromado. Ligou para um número aleatório, precisava conversar com alguém, ninguém atendeu... Sempre que procuram por explicações eu ofereço vários tempos, para que tentem descobrir. Estava tudo vazio, a mansão, a garrafa de vodka e sua vida, em condição contrária se encontrava o tambor da arma, ele não se daria outra chance de sofrer. Os vidros da cristaleira estremeceram com o disparo, mas o milionário não morreu, a bala não chegou a estourar sua cabeça, antes que isso pudesse acontecer ele desapareceu, não havia mais corpo. Nunca houve ossos em seu túmulo.

5 de fev. de 2008

ARTE

Uma exposição de arte não muito longe, Salvador Dalí vivo nas paredes brancas, admiradores simplesmente emocionados, colecionadores certamente apaixonados, Cecília e Léo se distanciando. A genialidade com que as tintas foram grudadas nas telas absorve a atenção de Cecília, a riqueza dos detalhes convida-a para uma viagem através de seu interior, à procura de significados para o que vê e não vê, tudo repleto de beleza e complexidade. A distância entre os quadros inquieta Léo, são apenas delírios de um louco com bigodes esquisitos, a graça durava pouco.

Mãos unidas, pensamentos disparelhos, assim estão Cecília e Léo, uma fotógrafa emotiva, um arquiteto meticuloso. A jovem segue os passos da música que ouve, vai de obra em obra, suspirando e comentando. Para Léo só há o silêncio, ele apenas acompanha os passos de valsa camuflada da noiva, fora do ritmo, ouve tudo que se origina na boca rosa clara dela, não concorda com nada, discorda do que não entende. O tempo se esvaindo, apenas relógios deformados, seres diferentes do contexto, nada mais que plantas nascendo de ovos. Cecília e sua fruição, Léo e sua exatidão.

O mundo continua o mesmo lá fora, a afinidade não, fotógrafa e arquiteto discutem sobre pontos de vista, diferenças gritantes. A imaginação fértil impede Cecília de aceitar que não havia nada demais naquelas telas, a insensibilidade mantinha Léo distante da vastidão de significados que as obras proporcionavam.
- Léo, sua fixação pelos cálculos, pela exatidão, te tornaram uma pessoa tão mecânica, fria...
- Mesmo assim vejo seus olhos como dois lindos baús repletos de emoções, trancados à sete chaves, mas que eu sei como abrir. Seus movimentos com a câmera te transformam em uma caçadora das imagens desta vida tão caótica. Você é uma pintura, repleta de significados.
Dalí é esquecido, o mundo está diferente, Léo e Cecília nunca estiveram distantes.

19 de jan. de 2008

ENIGMA, IRONIA, DESTINO

Foi dito que o início e o final, juntos, formam a estória, criam o sentido, fornecem a resposta. Dizem que, nos momentos onde a razão aponta para a desistência, só é possível ir adiante ignorando o lógico, fechando os olhos e unindo as mãos. As montanhas são maiores, mais antigas, mais resistentes, mas sempre disseram que elas podem ser removidas. Alguns dizem que um livro grosso é o guia da humanidade, com valiosos ensinamentos expostos ao longo de sua extensa narrativa. Outros afirmam que nunca existiu um Jesus de Nazaré.

Não é fácil aprender a arte da rima, pode ser mais complicado do que se imagina. É preciso aprender, ter conhecimento, é necessário ler, chegar a um desenvolvimento. Quem sabe rimar não é necessariamente um gênio, nem merece qualquer prêmio. Alguns rimam amor com dor, algo sem real esplendor, outros combinam hipoteca e bicicleta, coisa de fraco poeta. Quando se sabe rimar é possível fazer poesia, concebida ao raiar do dia, recitada em casa vazia. A estrutura não importa, pode se rimar até na redação mais torta, Drummond de Andrade não se revolta.

Acontece que choveu, e todos os planos para aquele dia iam por água a baixo. A visita ao parque, as risadas malcriadas que sempre escapam, o pôr do sol na beira do rio, os cílios que caem nos olhos provocando lágrimas mecânicas, nada disso aconteceria. Uma pena, mas não era para ser, se não a chuva não teria caído afinal, coisas assim não acontecem à toa. Havia a televisão, ia passar um filme bom, o gato rondava o sofá, um aroma de chá chegava até a sala, a decisão já estava tomada. Quatro batidas na porta, um leve susto, uma grande surpresa, parada lá fora, usando uma capa de chuva amarela e segurando outra vermelha, Ana sorria, não era o sol, e nem precisava ser.

7 de jan. de 2008

VASTIDÃO E DETALHES

Do alto da montanha pode-se ver toda uma pequena cidade, crivada de casas coloridas e árvores jovens. Às dezoito e cinqüenta, centenas de estudantes esvaziam o prédio da escola e espalham-se pelas ruas. As crianças formam grupos e colorem as ruas cinzentas enquanto seguem para suas casas, os casais de namorados adolescentes rumam abraçados para a praça. Aos poucos a noite se aproxima, afugentando alguns casais das ruas, convidando os jovens a aproveitar a atraente escuridão.

Os faróis dos carros, o néon das lojas, a luz amarelada dos postes. Essas pretensiosas imitações de dia fazem a cidade reluzir, como um imenso vaga-lume pousado na planície. Mas, lá do alto da montanha, não é possível enxergar exatamente o que cada um faz, não há como ouvir sobre o que estão conversando, que música os caras estão ouvindo, como é a maquiagem das meninas. Não há como saber os detalhes quando se está tão alto, quando se chega a esta conclusão descer se torna inevitável...

Já é possível ver os primeiros raios de sol na cidade. Um bêbado de barba rala e cabelo desgrenhado cambaleia pela praça. Alguns meninos, de uniforme e mochila nas costas, não tiram os olhos das fotos de mulheres nuas escondidas dentro do livro de geografia. Um carro todo rebocado e velho passa zunindo, levantando poeira e fazendo as folhas rodopiarem. Os cortes de cabelo das pessoas, as expressões de seus rostos, as flores da praça, é tudo atraente, esses detalhes são interessantes. Estranho, mas parece tudo tão diferente agora, será que algo mudou? Só vendo bem de cima para saber.

2 de jan. de 2008

CRISÁLIDA

Clara e as nuvens passeavam pelos arredores do que um dia foi uma fábrica de produtos químicos. No céu, as nuvens encobriam o sol, no chão, Clara descobria um pequeno e silencioso bosque logo atrás de um imenso galpão que a ferrugem devorava impiedosamente. Clara entrava lentamente no pequeno amontoado de árvores e arbustos, se esforçava para imitar o silêncio do belo bosque, na tentativa de sentir-se bela também, não queria incomodar.

Dentro da cidade, envolta pela mata, a menina de onze anos imaginava como seriam as coisas no futuro, quando tivesse uns onze anos mais. De olhos fechados, ela se via entrando em uma selva de pedra, repleta de prédios, barulho, agitação. O sol realçando seus cabelos coloridos, esquentando uma pele clara coberta de tatuagens, as marcas que resolveu gravar, aquela mesma arte de menina, das folhas de caderno. Não era mais Clara, não tinha por que ser, era uma nova pessoa, de certa forma, podia ser Carla, mesmas letras, lugares diferentes, tempos distintos.

Ao abrir os olhos, a menina deparou-se com uma crisálida pendurada em um fino galho. Lá dentro uma lagarta começava sua extraordinária transformação, ou será que já era uma borboleta prestes a sair? Clara observava aquela estranha criatura, que se escondia para mudar, mais ou menos como ela, escondida no bosque, tendo suas idéias de metamorfose. Do interior do minúsculo bosque, uma bonita borboleta saiu, batendo asas negras manchadas de rosa. Uma mulher corria feito uma menina atrás da borboleta, cabelo lilás ao vento, tatuagens escuras na pele, sorriso no rosto, em direção à cidade.