19 de jan. de 2008

ENIGMA, IRONIA, DESTINO

Foi dito que o início e o final, juntos, formam a estória, criam o sentido, fornecem a resposta. Dizem que, nos momentos onde a razão aponta para a desistência, só é possível ir adiante ignorando o lógico, fechando os olhos e unindo as mãos. As montanhas são maiores, mais antigas, mais resistentes, mas sempre disseram que elas podem ser removidas. Alguns dizem que um livro grosso é o guia da humanidade, com valiosos ensinamentos expostos ao longo de sua extensa narrativa. Outros afirmam que nunca existiu um Jesus de Nazaré.

Não é fácil aprender a arte da rima, pode ser mais complicado do que se imagina. É preciso aprender, ter conhecimento, é necessário ler, chegar a um desenvolvimento. Quem sabe rimar não é necessariamente um gênio, nem merece qualquer prêmio. Alguns rimam amor com dor, algo sem real esplendor, outros combinam hipoteca e bicicleta, coisa de fraco poeta. Quando se sabe rimar é possível fazer poesia, concebida ao raiar do dia, recitada em casa vazia. A estrutura não importa, pode se rimar até na redação mais torta, Drummond de Andrade não se revolta.

Acontece que choveu, e todos os planos para aquele dia iam por água a baixo. A visita ao parque, as risadas malcriadas que sempre escapam, o pôr do sol na beira do rio, os cílios que caem nos olhos provocando lágrimas mecânicas, nada disso aconteceria. Uma pena, mas não era para ser, se não a chuva não teria caído afinal, coisas assim não acontecem à toa. Havia a televisão, ia passar um filme bom, o gato rondava o sofá, um aroma de chá chegava até a sala, a decisão já estava tomada. Quatro batidas na porta, um leve susto, uma grande surpresa, parada lá fora, usando uma capa de chuva amarela e segurando outra vermelha, Ana sorria, não era o sol, e nem precisava ser.

7 de jan. de 2008

VASTIDÃO E DETALHES

Do alto da montanha pode-se ver toda uma pequena cidade, crivada de casas coloridas e árvores jovens. Às dezoito e cinqüenta, centenas de estudantes esvaziam o prédio da escola e espalham-se pelas ruas. As crianças formam grupos e colorem as ruas cinzentas enquanto seguem para suas casas, os casais de namorados adolescentes rumam abraçados para a praça. Aos poucos a noite se aproxima, afugentando alguns casais das ruas, convidando os jovens a aproveitar a atraente escuridão.

Os faróis dos carros, o néon das lojas, a luz amarelada dos postes. Essas pretensiosas imitações de dia fazem a cidade reluzir, como um imenso vaga-lume pousado na planície. Mas, lá do alto da montanha, não é possível enxergar exatamente o que cada um faz, não há como ouvir sobre o que estão conversando, que música os caras estão ouvindo, como é a maquiagem das meninas. Não há como saber os detalhes quando se está tão alto, quando se chega a esta conclusão descer se torna inevitável...

Já é possível ver os primeiros raios de sol na cidade. Um bêbado de barba rala e cabelo desgrenhado cambaleia pela praça. Alguns meninos, de uniforme e mochila nas costas, não tiram os olhos das fotos de mulheres nuas escondidas dentro do livro de geografia. Um carro todo rebocado e velho passa zunindo, levantando poeira e fazendo as folhas rodopiarem. Os cortes de cabelo das pessoas, as expressões de seus rostos, as flores da praça, é tudo atraente, esses detalhes são interessantes. Estranho, mas parece tudo tão diferente agora, será que algo mudou? Só vendo bem de cima para saber.

2 de jan. de 2008

CRISÁLIDA

Clara e as nuvens passeavam pelos arredores do que um dia foi uma fábrica de produtos químicos. No céu, as nuvens encobriam o sol, no chão, Clara descobria um pequeno e silencioso bosque logo atrás de um imenso galpão que a ferrugem devorava impiedosamente. Clara entrava lentamente no pequeno amontoado de árvores e arbustos, se esforçava para imitar o silêncio do belo bosque, na tentativa de sentir-se bela também, não queria incomodar.

Dentro da cidade, envolta pela mata, a menina de onze anos imaginava como seriam as coisas no futuro, quando tivesse uns onze anos mais. De olhos fechados, ela se via entrando em uma selva de pedra, repleta de prédios, barulho, agitação. O sol realçando seus cabelos coloridos, esquentando uma pele clara coberta de tatuagens, as marcas que resolveu gravar, aquela mesma arte de menina, das folhas de caderno. Não era mais Clara, não tinha por que ser, era uma nova pessoa, de certa forma, podia ser Carla, mesmas letras, lugares diferentes, tempos distintos.

Ao abrir os olhos, a menina deparou-se com uma crisálida pendurada em um fino galho. Lá dentro uma lagarta começava sua extraordinária transformação, ou será que já era uma borboleta prestes a sair? Clara observava aquela estranha criatura, que se escondia para mudar, mais ou menos como ela, escondida no bosque, tendo suas idéias de metamorfose. Do interior do minúsculo bosque, uma bonita borboleta saiu, batendo asas negras manchadas de rosa. Uma mulher corria feito uma menina atrás da borboleta, cabelo lilás ao vento, tatuagens escuras na pele, sorriso no rosto, em direção à cidade.