17 de nov. de 2009

O HOMEM DO CABELO CURTO


Há um homem que nunca deixou o cabelo crescer. Sendo habitante do meu imaginário, ele me permite transcrever seus pensamentos acerca de madeixas longas: "Isso é coisa de baderneiros, relaxados, gente sem regras - Ele não se incomoda quando incluo a categoria messias em tais distinções - vagabundos e preguiçosos".
Vaidoso, ele mantém o cabelo sempre bem aparado, pois tem consciência que um desalinhamento capilar causaria má impressão. Este homem jamais se apresentaria sem seu paletó devidamente abotoado, sapatos de couro marrom brilhosos, calças sociais impecáveis e, claro, com os cabelos curtos cuidadosamente penteados para o lado direito, mesmo que apenas eu possa vê-lo. Símbolo de distinção, a etiqueta em pessoa, este é o homem de cabelo curto.
Eu já disse a ele que não ligo para tais arrumações, mas não adianta, sou ignorado e forçado a contemplar sua obsessão pela boa aparência. Como pode alguém não ter vontade de deixar o cabelo crescer uma vez na vida? Em qual calabouço tal pessoa teria trancado sua curiosidade? Sempre que me faço essas perguntas o homem do cabelo curto sai a procura de uma tesoura... Toda vez que lanço tais questões ao homem ele corta cuidadosamente alguns fios, sem dizer nenhuma palavra.
Ele amputa suas possibilidades sem pestanejar, deixando-as cair mansamente, sem jamais dirigir um olhar para o chão, onde elas vão se amontando há muito tempo. "Para que mudar algo correto?", me pergunta ele... "Me sinto bem estando nos conformes", esclarece ele. Eu nunca entendi o homem do cabelo curto, mesmo conhecendo-o muito bem.

6 de out. de 2009

CALEIDOSCÓPIO EM SÉPIA


Certo dia, um certo homem me disse que eu era quadrado. O homem estava de fato certo, explico aos que não leram dessa forma, os tais regrados, gente necessitada de organização, se vem escrito antes é muito cedo, só se vem depois que é certo. A quadradez do sujeito, eu no caso, por acaso é fruto das explicações, como pôde ser visto anteriormente, como posteriormente poderá receber um visto. É da minha natureza explicar, o que nada mais é do que descomplicar o dito por este que vos fala. Consertar? Nem pensar! Tá tudo certo, só mal colocado. Mudar? Sou letrado, não fico calado! Por essas e aquelas o certo homem certo afirmou que eu tinha quatro lados, na hora pensei em ir morar num desses livros de matemática, correspondências para: Ensino Médio - Matemática, bairro das Figuras Geométricas, página 42. Que tipo de pessoa é quadrada? Ele poderia ter me chamado de redondo pelo menos... Mas aí ele estaria errado, e eu nem chegaria a ser quadrado. Pensando bem, os redondos só sabem rolar, e sempre pro lado afundado ainda! Depois enchem a boca, não basta ter só a pança nessa condição, para dizer que, ao menos, para algum lado vão. Eles têm muita razão... Isso deve pesar bastante. Eu, no meio de uma explicância - plural de explicações - parei para ouvir a sentença de uma sentença, sim, condenavam uma frase! A pena era horrenda: "Condenada ao esquecimento", por ser deformada, sem sentimento. Os regrados - de novo eles - julgavam, enquanto os poetas - bem aqueles - rezavam, tudo ao mesmo tempo, no templo da rima. Voltando ao que explicava eu antes: quatro lados... Um bom, um ruim, um profundo e um raso assim? Será? Preciso perguntar a um engenheiro se é possível, não quero que a casa caia depois. Tudo isso por causa de um ser correto e sua sabedoria ao quadrado. A propósito, o dia também estava certo.

PARTE DO AR


Hoje você acordou diferente, teve um sonho, e nele viu o que precisava fazer, descobriu sua missão nessa vida. Você não quis me explicar, não contou nada, disse que era fantástico demais para descrever. Partiu e me deixou falando sozinho. Saiu apenas com a roupa no corpo e com a lembrança do sonho na cabeça, passos firmes, em direção a montanha mais alta do lugar.
A subida seria difícil, você nunca havia feito nada parecido, precisaria de muito fôlego e resistência, pois queria chegar ao topo, com certeza. Em pouco tempo uma distância enorme foi percorrida, isso não era normal, as imagens do sonho também não, tudo estava se compensando naquele momento. Aquele corpo não parecia ser o seu, o topo já estava logo ali e o cansaço não havia aparecido, a dúvida havia ficado no travesseiro, na noite anterior.
Finalmente você alcançou o topo, estava tudo aos seus pés, rodeando o monte, era ali que se cumpriria a visão mais espetacular do sonho. Você confiou no que viu, sentiu e ouviu, acreditou em tudo que sonhou, estendeu os braços, fechou os olhos e, com toda a paciência do mundo, esperou. Um pequeno sorriso brotou em sua face um pouco antes de uma forte lufada de vento atingí-la, era aquilo! No sonho, essa rajada de vento levava consigo todos os seus pensamentos e os espalhava pelo mundo, todos seriam contagiados por sua vontade de ver um mundo melhor.
Lá embaixo, correntes foram partidas, silêncios quebrados, amores recordados, perseveranças blindadas, tentativas valeram à pena, mortos descansaram em paz , vivos viveram em paz, políticas ruíram, bombas viraram pó, religiões minguaram, todos acreditaram mais em si mesmos, aceitaram que não podiam fazer tudo, acreditaram que podiam fazer muito mais, quem chorou sorriu, quem sorriu continou assim para sempre, por algumas eternidades o tempo parou.
Você ainda estava lá, de pé, completamente vazia, o vento havia levado tudo consigo, realmente não havia sobrado mais nada, seus lábios voltaram a se fechar dramáticamente. A missão havia sido cumprida com louvor, e o vento voltou para te buscar. Uma leve brisa soprou contínuamente sobre seu corpo que foi se esfarelando lentamente, eram partículas tão pequenas que mal podiam ser vistas, você se misturou com o ar, o oxigênio, a vida. Hoje eu consigo ouví-la assobiando durante as ventanias e tempestades, não sei o que você diz, mas sei que está bem.

18 de jun. de 2009

TUDO COMO DEVE SER


Esqueci de te contar as histórias nas quais eu não acreditava, comecei muito mal. Disse-lhe quem eu realmente era, e isso, que não deveria ter sido feito, eu lembrei de fazer. Agi com você da mesma forma que agi com outras pessoas, não lembrei que era por conta desse comportamento que estava sozinho. Não lhe mostrei nenhum lugar que eu não conhecia, nem mesmo lhe contei qualquer coisa sobre a qual não tinha conhecimento, faltou impressionar. Eu não transgredi nenhuma regra, não planejei os momentos para lhe fazer rir ou chorar, não fui nada organizado e objetivo.
Fui muito antigo tentando ser novo, escrevi versos pobres e os entreguei de qualquer maneira, arquitetei surpresas previsíveis. Minhas frases nunca terminavam, ou começavam já pelo final, eu sempre fechava os olhos um pouco antes dos seus mais belos olhares, disso eu tenho certeza. Fui mundano quando não se pode ser, não fiz nada demais, fiquei procurando o significado da palavra “audácia” em um dicionário velho e repleto de traças, esquecido nos confins da minha memória. Agora eu percebo que fiz tudo do avesso, devia ter ousado mais, poderia pelo menos ter usado minha criatividade.
Algumas coisas eu de fato não entendo, é estranho concluir que eu deveria não ter sido eu mesmo. Criticar-me por não ter agido de uma maneira desconhecida também é difícil de assimilar. Fica tudo mais complicado quando o assunto envolve um novo personagem, até porque, depois, não será uma história e sim uma estória. O mais inacreditável mesmo é que, apesar de eu ter feito tudo errado, indo contra a lógica, desprezando os sinais, você continua aqui comigo! Isso está certo, mas não deveria estar... Não é?

12 de mai. de 2009

O ABRIDOR DE PILHAS


Eu estava naquela idade onde já entendia a morte, mas ainda não conhecia o sexo. Me preparava para mais uma das maçantes viagens ao interior do Rio Grande do Sul, até os campos de cima de serra, visitar meus avós. Eram raras as ocasiões em que sentia vontade de ir até aquele lugar, onde não havia sequer luz elétrica. Me sentia mal antes mesmo de sair de casa, tendo a certeza de que passaria o dia inteiro longe dos meus amigos e brinquedos, sem nada para fazer, coisa de piá. Eu não conseguia ver o lado bom daqueles passeios, pelo menos até chegar na humilde casa de madeira projetada e construída pelo meu próprio avô.
Ao ver os rostos dos meus avós, bem marcados pelo tempo e pelo trabalho, eu já sentia algo diferente, meu mau humor praticamente desaparecia do meu interior, mas eu continuava emburrado por fora, tinha que preservar o meu inútil orgulho. Logo o tédio se apoderava de mim outra vez, e as perspectivas nunca eram boas em um lugar onde não havia televisão. Eu precisava me divertir de alguma forma, tinha que inventar uma brincadeira com os objetos que estavam ao alcance.
Meus avós, na falta de uma televisão, ouviam rádio, pois este não necessitava de energia elétrica para funcionar, bastavam algumas pilhas. Por isso, para todo lado que eu olhava via uma pilha, eram muitas, de várias marcas e tamanhos. Aqueles eram objetos que me fascinavam, pois alimentavam aparelhos eletrônicos sem estarem conectados a qualquer tipo de energia, para mim eram como cápsulas mágicas. Não demorei muito para perceber que finalmente poderia descobrir como funcionavam aquelas estranhas fontes de energia. Furtivamente, eu catava algumas pilhas bonitas e grandes e me dirigia para estradinha de terra que ficava na frente da casa, meu laboratório nada particular, que contava apenas com o belo céu anil do Rio Grande de teto.
Começava a destruição! Munido de uma grande pedra, eu empregava todo meu esforço para abrir as pilhas: colocava-as de pé sobre uma outra pedra e lançava a que tinha nas mãos sobre elas, na tentativa de romper a blindagem metálica que as revestia. Funcionava muito bem, o metal se deformava com as batidas, e ficava fácil retirá-lo. Pouco a pouco as pilhas eram destroçadas, e eu via maravilhado as substâncias que formavam-nas, era quase inacreditável conceber que pudesse haver tanta coisa bizarra lá dentro.
O sorriso brotava no meu rosto ao retirar o "coração" do que havia sobrado da pilha, uma pequena barra escura e dura, que era imediatamente esfarelada com mais algumas batidas de pedra, estava terminado. Naquelas tardes ensolaradas e poeirentas de domingo, uma das invenções mais curiosas do homem era destrinchada do modo mais rústico possível, por um menino franzino e inquieto, que apenas tentava se divertir.

26 de fev. de 2009

BELEZAS HUMANAS


Dois oceanos do mais hipnotizante e infinito azul movimentam-se calmamente, apresentam-se para o horizonte, exibem-se para o céu e lambem, inocentemente, o continente. A noite se faz presente no centro da imensidão marinha, duas sombras que, sabiamente, impedem o nascimento do absoluto, pequenos vultos que os mares, misteriosamente, não engolem. O dia e a noite passam, ambos caem sobre as águas como espessas cortinas, escondendo-as. São turnos muito caóticos, têm a duração de um piscar de olhos e nada avisam sobre suas breves idas e vindas. No fundo desses oceanos repousam valiosos tesouros, nada que se possa ver ou tocar, são conhecimentos que vão além da imaginação, muito bem guardados pelo enigmático azul.
O dourado do deserto se intensifica ainda mais sob os raios de sol. Não há vento, mas a areia se move graciosamente, formando traços, ora sublimes, ora bizarros, sobre o solo. A transformação jamais cessa, dunas erguem-se em segundos e somem momentos depois, sem qualquer explicação. O terreno nômade renova-se a cada instante, criando suas inúmeras expressões, para o bem ou para o mal. O deserto está ciente que o seu papel na natureza é o de demonstrar, da forma mais difícil, porém eficaz, os complexos desejos que existem nas profundezas da terra.
A brisa acaricia suavemente o trigal, destacando a desenvoltura que ele possui. Ela sopra com extrema cautela sobre a plantação, não quer desarrumar tamanha beleza. Cada pé de trigo contribui com sua forma e cor para a formação de um reluzente tapete bailarino, que o ar vai ensinando a dançar de forma majestosa. Mesmo sem vida, o trigal encanta os observadores, que jamais esquecerão dos passos que puderam admirar. Mesmo quando não estiverem em movimento, esses dançarinos serão lembrados.
As densas matas escondem e protegem fabulosos montes. Montanhas alvas de formas desconhecidas, encantadoras pelo simples fato de existirem, fascinantes pelos seus mistérios. Exuberantes e sensíveis monumentos, que demonstram sua simplicidade ao se deixarem levar pela inquietação. Eles pecam pelo simples motivo de estarem erguidos. Muitos perigos espreitam, a curiosidade e o instinto natural tornam míticos os atributos dessas formações. Algum dia, os segredos dos montes protegidos serão descobertos, com uma sincera admiração no olhar e ternura nos toques.

Escrito em 2006

10 de fev. de 2009

ÍCARO


Das nuvens um homem desceu. Veio caindo, leve como uma pluma, cabeça baixa e olhos fechados. Havia ficado muito tempo lá em cima, junto aos pássaros, conduzido pelas correntes de ar nascidas nos confins do mundo, observando com displicência as pessoas da terra firme, que mais pareciam minúsculas formigas correndo desvairadamente em todas as direções. Até o dia em que seu corpo começou a ficar pesado, tão pesado que já não podia mais flutuar, foi quando retornou ao chão empoeirado da civilização.
Ele não planejou nada, apenas sentiu uma inexplicável leveza, um misto de liberdade e despreocupação tomou conta de seu interior, desconectando-o das preocupações mundanas. E foi assim, desligado da terra e de suas pessoas, que ele subiu, como um foguete rumo ao céu. No início, foi escravo do vento, perdeu a conta de quantas vezes uma lufada de vento o mandou para longe de onde queria estar. Até pensou em conformar-se com os caprichos das correntes de ar, pois viver nas alturas já era algo extraordinário, ter controle sobre isso seria pedir demais... Quando voltou a tocar o chão lembrou-se disto, e teve a certeza de que teria sido melhor aquela vida ao sabor do vento.
Inconformado por não conseguir controlar seus próprios rumos, pôs-se a treinar. Aprendeu a movimentar-se enquanto era carregado pelas rajadas, isso nem sempre era possível, mas, com o tempo, passou a ter certa autonomia sobre suas viagens, e foi assim que acabou tendo contato com as coisas que havia deixado lá embaixo. Ele escolheu ver, nem que fosse de longe, como estavam algumas pessoas que não havia conseguido esquecer por completo. Dizia para si mesmo que aquelas pessoas representavam o motivo dele não ter ido mais alto ainda, quem sabe estaria viajando pelas estrelas naquele momento se não fosse por elas.
A paz e a sensação de liberdade estavam sempre presentes, mas nem isso foi capaz de impedir que ele começasse a sentir o peso da solidão. Vez ou outra cruzava com pessoas que também viviam nas nuvens, mas era impossível parar sequer para conversar com elas, aquela era uma vida de constante movimento, na verdade foi tudo o que ele sempre quis, pelo menos até aquele momento. Ele não sabia se as pessoas que amava haviam esquecido dele, se não eram capazes de voar, ou se elas simplesmente não queriam uma existência como aquela, sem regras, ou paradeiro, sem um chão. Essas dúvidas foram ganhando peso, o que o fez pensar na possibilidade de não conseguir permanecer nas nuvens... Àquela altura ele nem sabia mais se viver no céu era realmente o melhor.
Enquanto seus lábios sorriam, seus olhos choravam. As dúvidas ganharam proporções inimagináveis, as lembranças de sua antiga vida atrapalhavam sua concentração, ele já não era mais capaz de controlar o vôo, ficava cada vez mais claro que não conseguiria se manter no céu. Diversas vezes ele se perguntou por que escolheu observar os que havia deixado na terra firme, e jamais chegou perto de qualquer conclusão. Ele havia deixado de se importar com aquela gente o suficiente para conseguir voar, foi uma escolha que acabou trazendo dor mais tarde. O mesmo motivo que o possibilitou desfrutar daquela vida intensa e indescritível, também seria o que o levaria de volta ao chão.
O dia chegou, ela sentia isso, estava pesado demais para flutuar, havia chegado a hora de se despedir de tudo aquilo e voltar a usar os pés. Contemplou uma última vez os picos brancos das montanhas que se erguiam acima das nuvens, bateu palmas para o vôo perfeito da águia, escutou com prazer o som avassalador dos trovões no interior das nuvens escuras de uma tempestade, e despediu-se de todos aqueles que conseguiu ver lá em cima naquele instante. Enquanto descia ia lembrando dos momentos de sua ascensão, da estranha sensação de não ter nada que o prendesse, e da certeza sobre seu destino, algo que praticamente nunca tivera na vida. Apenas uma certeza ricocheteava em seu interior, jamais procuraria aquela gente que o fez retornar, nunca perguntaria a elas porque não o procuraram, porque não quiseram se juntar a ele lá em cima.
Ao tocar o solo sentiu um grande desconforto, era como se tivesse sido acorrentado ao solo. A sensação foi tão intensa que o impediu de andar, e foi piorando, pois seu corpo todo foi praticamente puxado pela gravidade até o chão. Por alguns instantes ele ficou inerte, reuniu todas as forças que possuía para levantar, mas não conseguiu mover um dedo sequer. Aos poucos ele foi se acostumando com o peso do corpo, e, com algum esforço, conseguiu se pôr de pé novamente. Ao perceber que não seria mais carregado pelo vento, pediu ajuda às pessoas que passavam por perto, e estas o levaram até sua casa. Ele notou que só conseguia sair do lugar com a ajuda e sugestões de outras pessoas, e foi precisamente nesse instante que ele, Ícaro, desejou voltar às alturas.