26 de fev. de 2009

BELEZAS HUMANAS


Dois oceanos do mais hipnotizante e infinito azul movimentam-se calmamente, apresentam-se para o horizonte, exibem-se para o céu e lambem, inocentemente, o continente. A noite se faz presente no centro da imensidão marinha, duas sombras que, sabiamente, impedem o nascimento do absoluto, pequenos vultos que os mares, misteriosamente, não engolem. O dia e a noite passam, ambos caem sobre as águas como espessas cortinas, escondendo-as. São turnos muito caóticos, têm a duração de um piscar de olhos e nada avisam sobre suas breves idas e vindas. No fundo desses oceanos repousam valiosos tesouros, nada que se possa ver ou tocar, são conhecimentos que vão além da imaginação, muito bem guardados pelo enigmático azul.
O dourado do deserto se intensifica ainda mais sob os raios de sol. Não há vento, mas a areia se move graciosamente, formando traços, ora sublimes, ora bizarros, sobre o solo. A transformação jamais cessa, dunas erguem-se em segundos e somem momentos depois, sem qualquer explicação. O terreno nômade renova-se a cada instante, criando suas inúmeras expressões, para o bem ou para o mal. O deserto está ciente que o seu papel na natureza é o de demonstrar, da forma mais difícil, porém eficaz, os complexos desejos que existem nas profundezas da terra.
A brisa acaricia suavemente o trigal, destacando a desenvoltura que ele possui. Ela sopra com extrema cautela sobre a plantação, não quer desarrumar tamanha beleza. Cada pé de trigo contribui com sua forma e cor para a formação de um reluzente tapete bailarino, que o ar vai ensinando a dançar de forma majestosa. Mesmo sem vida, o trigal encanta os observadores, que jamais esquecerão dos passos que puderam admirar. Mesmo quando não estiverem em movimento, esses dançarinos serão lembrados.
As densas matas escondem e protegem fabulosos montes. Montanhas alvas de formas desconhecidas, encantadoras pelo simples fato de existirem, fascinantes pelos seus mistérios. Exuberantes e sensíveis monumentos, que demonstram sua simplicidade ao se deixarem levar pela inquietação. Eles pecam pelo simples motivo de estarem erguidos. Muitos perigos espreitam, a curiosidade e o instinto natural tornam míticos os atributos dessas formações. Algum dia, os segredos dos montes protegidos serão descobertos, com uma sincera admiração no olhar e ternura nos toques.

Escrito em 2006

10 de fev. de 2009

ÍCARO


Das nuvens um homem desceu. Veio caindo, leve como uma pluma, cabeça baixa e olhos fechados. Havia ficado muito tempo lá em cima, junto aos pássaros, conduzido pelas correntes de ar nascidas nos confins do mundo, observando com displicência as pessoas da terra firme, que mais pareciam minúsculas formigas correndo desvairadamente em todas as direções. Até o dia em que seu corpo começou a ficar pesado, tão pesado que já não podia mais flutuar, foi quando retornou ao chão empoeirado da civilização.
Ele não planejou nada, apenas sentiu uma inexplicável leveza, um misto de liberdade e despreocupação tomou conta de seu interior, desconectando-o das preocupações mundanas. E foi assim, desligado da terra e de suas pessoas, que ele subiu, como um foguete rumo ao céu. No início, foi escravo do vento, perdeu a conta de quantas vezes uma lufada de vento o mandou para longe de onde queria estar. Até pensou em conformar-se com os caprichos das correntes de ar, pois viver nas alturas já era algo extraordinário, ter controle sobre isso seria pedir demais... Quando voltou a tocar o chão lembrou-se disto, e teve a certeza de que teria sido melhor aquela vida ao sabor do vento.
Inconformado por não conseguir controlar seus próprios rumos, pôs-se a treinar. Aprendeu a movimentar-se enquanto era carregado pelas rajadas, isso nem sempre era possível, mas, com o tempo, passou a ter certa autonomia sobre suas viagens, e foi assim que acabou tendo contato com as coisas que havia deixado lá embaixo. Ele escolheu ver, nem que fosse de longe, como estavam algumas pessoas que não havia conseguido esquecer por completo. Dizia para si mesmo que aquelas pessoas representavam o motivo dele não ter ido mais alto ainda, quem sabe estaria viajando pelas estrelas naquele momento se não fosse por elas.
A paz e a sensação de liberdade estavam sempre presentes, mas nem isso foi capaz de impedir que ele começasse a sentir o peso da solidão. Vez ou outra cruzava com pessoas que também viviam nas nuvens, mas era impossível parar sequer para conversar com elas, aquela era uma vida de constante movimento, na verdade foi tudo o que ele sempre quis, pelo menos até aquele momento. Ele não sabia se as pessoas que amava haviam esquecido dele, se não eram capazes de voar, ou se elas simplesmente não queriam uma existência como aquela, sem regras, ou paradeiro, sem um chão. Essas dúvidas foram ganhando peso, o que o fez pensar na possibilidade de não conseguir permanecer nas nuvens... Àquela altura ele nem sabia mais se viver no céu era realmente o melhor.
Enquanto seus lábios sorriam, seus olhos choravam. As dúvidas ganharam proporções inimagináveis, as lembranças de sua antiga vida atrapalhavam sua concentração, ele já não era mais capaz de controlar o vôo, ficava cada vez mais claro que não conseguiria se manter no céu. Diversas vezes ele se perguntou por que escolheu observar os que havia deixado na terra firme, e jamais chegou perto de qualquer conclusão. Ele havia deixado de se importar com aquela gente o suficiente para conseguir voar, foi uma escolha que acabou trazendo dor mais tarde. O mesmo motivo que o possibilitou desfrutar daquela vida intensa e indescritível, também seria o que o levaria de volta ao chão.
O dia chegou, ela sentia isso, estava pesado demais para flutuar, havia chegado a hora de se despedir de tudo aquilo e voltar a usar os pés. Contemplou uma última vez os picos brancos das montanhas que se erguiam acima das nuvens, bateu palmas para o vôo perfeito da águia, escutou com prazer o som avassalador dos trovões no interior das nuvens escuras de uma tempestade, e despediu-se de todos aqueles que conseguiu ver lá em cima naquele instante. Enquanto descia ia lembrando dos momentos de sua ascensão, da estranha sensação de não ter nada que o prendesse, e da certeza sobre seu destino, algo que praticamente nunca tivera na vida. Apenas uma certeza ricocheteava em seu interior, jamais procuraria aquela gente que o fez retornar, nunca perguntaria a elas porque não o procuraram, porque não quiseram se juntar a ele lá em cima.
Ao tocar o solo sentiu um grande desconforto, era como se tivesse sido acorrentado ao solo. A sensação foi tão intensa que o impediu de andar, e foi piorando, pois seu corpo todo foi praticamente puxado pela gravidade até o chão. Por alguns instantes ele ficou inerte, reuniu todas as forças que possuía para levantar, mas não conseguiu mover um dedo sequer. Aos poucos ele foi se acostumando com o peso do corpo, e, com algum esforço, conseguiu se pôr de pé novamente. Ao perceber que não seria mais carregado pelo vento, pediu ajuda às pessoas que passavam por perto, e estas o levaram até sua casa. Ele notou que só conseguia sair do lugar com a ajuda e sugestões de outras pessoas, e foi precisamente nesse instante que ele, Ícaro, desejou voltar às alturas.