26 de fev. de 2008

DOIS

No final da tarde, antes do fim daquela vida antiga, dois corações palpitavam quase no mesmo compasso, duas palavras foram pronunciadas e ouvidas antes de se perderem pelo ar. Uma morte sussurrou seu nome, uma nova vida surgiu e gritou para a realidade. Descobriram que o sol beijava tudo com sua luz, daquele momento em diante o medo seria tratado como lenda. Aquilo acabaria apenas junto com o mundo, não poderia ter outro fim tal sentimento. Naquele instante o universo ganhava um irmão, aquela sensação também era infinita.

Os olhares se cruzavam e pulverizavam os seres ao redor, não havia chão ou paredes, ambos flutuavam em meio ao nada. Não sabiam o que faziam, as palavras eram criadas sem qualquer intenção, totalmente desprovidas de razão, falavam consigo mesmos, já que não estavam mais separados. Seus corpos se tornaram fantasmas, intocáveis, indefesos, havia apenas a consciência, incapaz de discernir realidade de sonho. Os relógios continuavam funcionando, mas o tempo havia parado.

Nomes e cores perderam o sentido, suas crenças se unificaram, não precisaram de explicações durante aquela breve eternidade. Cada um de seus sentidos parecia ter sido forjado especialmente para aquele momento, perceberam qual era o motivo de estarem vivos, sentiam-se completos finalmente. Nada estava escrito, os dois caminharam até lá, sentaram-se debaixo da mesma árvore, pensavam as mesmas coisas, sentiam o mesmo, falaram sério, disseram a verdade.

15 de fev. de 2008

VALORES INCONSCIENTES

A casa está em péssimas condições, situada não se sabe bem onde... Falo daqueles sonhos que não são lembrados, me refiro àqueles que vivem sem estarem despertos. Ela está lá, ainda de pé, e assim deve permanecer, pois abriga uma fortuna. Incontáveis quilos de dinheiro, de todas as partes do mundo, cobrem o chão, sobem pelas paredes desgastadas. Nesse mesmo chão repousa um casal, eles se olham fixamente, não perceberam que lhes faltam os braços e as pernas, estão juntos e podem admirar as íris. Começa a chover, o telefone toca, o dinheiro não se move.

O negociante de ossos aparecerá, entrará usando uma capa que lhe proporciona um corpo e seu chapéu que lhe confere um rosto. Quando começar a chover ele abrirá a porta de madeira, arrastará para dentro sua caixa repleta de restos mortais... Crânio destruído por um projétil, aquela ossada com perfurações nos punhos, pés e peito. O negociante não demorará, verá o telefone cheio de poeira em cima de uma mesa e dois esqueletos incompletos no chão, pegará duas moedas, abrirá sua caixa e voltará pra o lugar de onde não gostaria de ter vindo.

Sozinho em sua mansão o milionário carregou o trinta e oito cromado. Ligou para um número aleatório, precisava conversar com alguém, ninguém atendeu... Sempre que procuram por explicações eu ofereço vários tempos, para que tentem descobrir. Estava tudo vazio, a mansão, a garrafa de vodka e sua vida, em condição contrária se encontrava o tambor da arma, ele não se daria outra chance de sofrer. Os vidros da cristaleira estremeceram com o disparo, mas o milionário não morreu, a bala não chegou a estourar sua cabeça, antes que isso pudesse acontecer ele desapareceu, não havia mais corpo. Nunca houve ossos em seu túmulo.

5 de fev. de 2008

ARTE

Uma exposição de arte não muito longe, Salvador Dalí vivo nas paredes brancas, admiradores simplesmente emocionados, colecionadores certamente apaixonados, Cecília e Léo se distanciando. A genialidade com que as tintas foram grudadas nas telas absorve a atenção de Cecília, a riqueza dos detalhes convida-a para uma viagem através de seu interior, à procura de significados para o que vê e não vê, tudo repleto de beleza e complexidade. A distância entre os quadros inquieta Léo, são apenas delírios de um louco com bigodes esquisitos, a graça durava pouco.

Mãos unidas, pensamentos disparelhos, assim estão Cecília e Léo, uma fotógrafa emotiva, um arquiteto meticuloso. A jovem segue os passos da música que ouve, vai de obra em obra, suspirando e comentando. Para Léo só há o silêncio, ele apenas acompanha os passos de valsa camuflada da noiva, fora do ritmo, ouve tudo que se origina na boca rosa clara dela, não concorda com nada, discorda do que não entende. O tempo se esvaindo, apenas relógios deformados, seres diferentes do contexto, nada mais que plantas nascendo de ovos. Cecília e sua fruição, Léo e sua exatidão.

O mundo continua o mesmo lá fora, a afinidade não, fotógrafa e arquiteto discutem sobre pontos de vista, diferenças gritantes. A imaginação fértil impede Cecília de aceitar que não havia nada demais naquelas telas, a insensibilidade mantinha Léo distante da vastidão de significados que as obras proporcionavam.
- Léo, sua fixação pelos cálculos, pela exatidão, te tornaram uma pessoa tão mecânica, fria...
- Mesmo assim vejo seus olhos como dois lindos baús repletos de emoções, trancados à sete chaves, mas que eu sei como abrir. Seus movimentos com a câmera te transformam em uma caçadora das imagens desta vida tão caótica. Você é uma pintura, repleta de significados.
Dalí é esquecido, o mundo está diferente, Léo e Cecília nunca estiveram distantes.