26 de jan. de 2010

SANGRAR


Um vento gelado forma marolas em uma poça de sangue que colore de forma funesta uma gasta calçada. Um homem estivera sentado naquele local por alguns instantes, tempo suficiente para deixar seu rastro, sem saber que o fazia. Ele nem mesmo havia percebido que sangrava, só sentia uma dor incômoda, constante, da qual não conseguia se livrar. Sua tentativa de aplacar tal dor foi o que acabou levando-o até aquele lugar, pois decidiu caminhar um pouco, a fim de espairecer. Na verdade queria esquecer uma porção de coisas, mesmo sabendo que não atingiria tal objetivo, pelo menos não naquela mesma tarde, quem sabe nunca conseguiria tal façanha, era nisso que pensava, era por isso que sangrava.
É possível ver diversas gotículas vermelhas espalhadas pela ruela que conduz para fora do simpático parque da cidade. A rua estreita e repleta de volumosas árvores foi percorrida às pressas pelo homem ferido. Ele sentiu-se ameaçado pelas pessoas que viu andando no parque, podiam querer interrogá-lo, perguntar acerca de suas roupas desajeitadas e amassadas, ou da palidez do rosto. Concluiu que fora uma péssima idéia ter ido até lá, mesmo tendo visto os patos nadando tranquilamente no lago, ou os pássaros saindo furtivamente do interior de vistosos arbustos. Aquelas cenas simples e corriqueiras acalmaram seu espírito e até abrandaram levemente seu sofrimento, mas bastou ver novamente os inquisidores olhos do ser humano para que a dor aumentasse.
Uma moça de semblante triste observa, intrigada, algumas manchas vermelhas em sua camisa branca. Algumas horas atrás, o homem machucado discutiu com essa mulher, que agora vê o sangue dele impregnado em sua roupa. Ele sentiu uma punhalada quando a ouviu dizer que não era culpada pelo ferimento aberto em seu peito. O homem tinha certeza, não havia ferida alguma antes disso, tudo acontecera naquele instante. Ao perceber isso, o medo tomou conta, e ele saiu correndo, sem rumo, estava confuso, pois fugia do amor de sua vida. Sua amada permaneceu imóvel, com os braços suspensos no ar, como se ainda abraçasse aquele homem ferido que se distanciava.

Um comentário:

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Do Caos, segundo Hesíodo, nasceram Eros e Gaia. Caos como potencialidade, Gaia como matéria do Universo e Eros como princípio do movimento. Porém, para o Panteão Romano, Eros é Cupido, Deus do Amor. Isso me remete a um texto recente no qual escrevi que a alma do corpo era o sangue e que devíamos nos contentar com isso. Traçando uma linha entre a mitografia básica que esbocei acima e o seu texto, vejo seu personagem só, escorrendo por dentre ruas repletas de olhares repressores, inquisidores daqueles que sentem. Vejo seu personagem sentimental demais, franco demais, movimento demais para suportar o julgar sempre indolente desses olhares de foice e cadafalso. Mesmo assim ele não se esconde, tanto é que a mancha do seu sangue, quiçá espírito do corpo, Eros em movimento, permanece. Mas a dor, essa sim é que estampa a calçada e a camisa branca, é que abre o peito em faca sem o pudor das paixões de uma noite só, consumidas pelo consumo que vicia e torna objeto a face de qualquer corpo ou boca. Contudo, o que sangra e o que vale é uma narrativa plena de poesia, na qual a ausência é a presença da própria dor que se esvai, assim como se esvai o movimento e a potencialidade para os amanhãs, fazendo com que esse homem, homem de toda face e toda mão, recaia ao Abismo que precede o Caos para enfim emergir seu Universo contido unicamente nas suas palavras - ou quem sabe se faça matéria de si mesmo no eterno porvir daqueles que sabem que a vida, heraclitiana que é, não está para um poço, mas sim para as pedras de um rio que jamais cria limo, que jamais é estagnação, que sempre é movimento, ainda que martirizada pela perda das infinitas discussões do coração, algo que a arte das suas palavras tramou bem em meio à tempestade de tantos sentires. Um grande abraço e saiba que muito aprecio seu estilo narrativo. Eduardo Matzembacher Frizzo (do blog http://insufilme.blogspot.com/).