10 de fev. de 2009

ÍCARO


Das nuvens um homem desceu. Veio caindo, leve como uma pluma, cabeça baixa e olhos fechados. Havia ficado muito tempo lá em cima, junto aos pássaros, conduzido pelas correntes de ar nascidas nos confins do mundo, observando com displicência as pessoas da terra firme, que mais pareciam minúsculas formigas correndo desvairadamente em todas as direções. Até o dia em que seu corpo começou a ficar pesado, tão pesado que já não podia mais flutuar, foi quando retornou ao chão empoeirado da civilização.
Ele não planejou nada, apenas sentiu uma inexplicável leveza, um misto de liberdade e despreocupação tomou conta de seu interior, desconectando-o das preocupações mundanas. E foi assim, desligado da terra e de suas pessoas, que ele subiu, como um foguete rumo ao céu. No início, foi escravo do vento, perdeu a conta de quantas vezes uma lufada de vento o mandou para longe de onde queria estar. Até pensou em conformar-se com os caprichos das correntes de ar, pois viver nas alturas já era algo extraordinário, ter controle sobre isso seria pedir demais... Quando voltou a tocar o chão lembrou-se disto, e teve a certeza de que teria sido melhor aquela vida ao sabor do vento.
Inconformado por não conseguir controlar seus próprios rumos, pôs-se a treinar. Aprendeu a movimentar-se enquanto era carregado pelas rajadas, isso nem sempre era possível, mas, com o tempo, passou a ter certa autonomia sobre suas viagens, e foi assim que acabou tendo contato com as coisas que havia deixado lá embaixo. Ele escolheu ver, nem que fosse de longe, como estavam algumas pessoas que não havia conseguido esquecer por completo. Dizia para si mesmo que aquelas pessoas representavam o motivo dele não ter ido mais alto ainda, quem sabe estaria viajando pelas estrelas naquele momento se não fosse por elas.
A paz e a sensação de liberdade estavam sempre presentes, mas nem isso foi capaz de impedir que ele começasse a sentir o peso da solidão. Vez ou outra cruzava com pessoas que também viviam nas nuvens, mas era impossível parar sequer para conversar com elas, aquela era uma vida de constante movimento, na verdade foi tudo o que ele sempre quis, pelo menos até aquele momento. Ele não sabia se as pessoas que amava haviam esquecido dele, se não eram capazes de voar, ou se elas simplesmente não queriam uma existência como aquela, sem regras, ou paradeiro, sem um chão. Essas dúvidas foram ganhando peso, o que o fez pensar na possibilidade de não conseguir permanecer nas nuvens... Àquela altura ele nem sabia mais se viver no céu era realmente o melhor.
Enquanto seus lábios sorriam, seus olhos choravam. As dúvidas ganharam proporções inimagináveis, as lembranças de sua antiga vida atrapalhavam sua concentração, ele já não era mais capaz de controlar o vôo, ficava cada vez mais claro que não conseguiria se manter no céu. Diversas vezes ele se perguntou por que escolheu observar os que havia deixado na terra firme, e jamais chegou perto de qualquer conclusão. Ele havia deixado de se importar com aquela gente o suficiente para conseguir voar, foi uma escolha que acabou trazendo dor mais tarde. O mesmo motivo que o possibilitou desfrutar daquela vida intensa e indescritível, também seria o que o levaria de volta ao chão.
O dia chegou, ela sentia isso, estava pesado demais para flutuar, havia chegado a hora de se despedir de tudo aquilo e voltar a usar os pés. Contemplou uma última vez os picos brancos das montanhas que se erguiam acima das nuvens, bateu palmas para o vôo perfeito da águia, escutou com prazer o som avassalador dos trovões no interior das nuvens escuras de uma tempestade, e despediu-se de todos aqueles que conseguiu ver lá em cima naquele instante. Enquanto descia ia lembrando dos momentos de sua ascensão, da estranha sensação de não ter nada que o prendesse, e da certeza sobre seu destino, algo que praticamente nunca tivera na vida. Apenas uma certeza ricocheteava em seu interior, jamais procuraria aquela gente que o fez retornar, nunca perguntaria a elas porque não o procuraram, porque não quiseram se juntar a ele lá em cima.
Ao tocar o solo sentiu um grande desconforto, era como se tivesse sido acorrentado ao solo. A sensação foi tão intensa que o impediu de andar, e foi piorando, pois seu corpo todo foi praticamente puxado pela gravidade até o chão. Por alguns instantes ele ficou inerte, reuniu todas as forças que possuía para levantar, mas não conseguiu mover um dedo sequer. Aos poucos ele foi se acostumando com o peso do corpo, e, com algum esforço, conseguiu se pôr de pé novamente. Ao perceber que não seria mais carregado pelo vento, pediu ajuda às pessoas que passavam por perto, e estas o levaram até sua casa. Ele notou que só conseguia sair do lugar com a ajuda e sugestões de outras pessoas, e foi precisamente nesse instante que ele, Ícaro, desejou voltar às alturas.

7 comentários:

Biba disse...

Nossa, que lindo!!! Eu não conseguia parar de ler. Uma coisa encadeando a outra. Que ser maravilhoso é Ícaro!
Beijo grande!
Carpe Diem!!!

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Esse seu texto me pôs quieto porque me fez ver além de cada linha. Existe um fosso no vão de cada palavra e é por ele que tento enxergar o seu Ícaro. Talvez esse desafio seja mais hermenêutico que poético, mas gosto de observar a literatura, pelo menos algumas vezes, com essa precisão cirúrgica de um neurologista, muito embora acredite que os erros serão inevitáveis caso isso ocorra. Entretanto, para além dessas percepções, a queda do seu Ícaro ficou perfeitamente arraigada nos adjetivos que usaste. E isso eu senti daqui. Digo a você que tenho procurado escrever de uma forma um tanto mais simples que as suas linhas que li. Aliás, suas linhas me lembraram alguns contos do Sete Contos de Fúria, do António Vieira, porém não com tanto fôlego. Caso você desosasse alguns argumentos mesmo desse texto, textos mais longos poderiam surgir, tenha certeza disso. Entretanto, admirei sua escrita e com certeza voltarei. Um abraço, Eduardo.

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Caro Marcelo. Volto pra cá para traçar mais algumas linhas. Quanto ao fato da minha observação no que pertine a sua possibilidade de maiores fôlegos, concordo que blogs têm um quê dos antigos diários jornalísticos - aqueles jornais que tinham edições da manhã e da tarde. Leitores de blogs querem estantaneidade, ímpeto de momento e não uma coisa meio Tolstói que os faça pensar demais. Apesar disso, tais verbos não querem dizer que é preciso muito para pensar algo. Uma amiga minha escreve o que chamam de haicai. Apesar das poucas palavras, cada frase demora dias a sair. Portanto, apesar de não dizermos muito, creio que temos de ao menos talhar com o mínimo de senso de artesão essas coisas que pela rede propagamos. Claro que essa é uma opinião restrita a mim. Existem blogs por aí que são diários de guariazinha e nada mais. Quanto ao meu, por vezes é diário de marmanjo, ainda que a maior parte dos meus sentires escritos sejam mais invenções que sentires. Mas quem disse que a vida não é assim? Deveríamos confiar apenas no mundo que inventamos. E por conta disso que retorno ao seu blog e tento procurar pistas do Ícaro em demais textos seus. Por conta disso também comentários futuros virão. Se tão chatos quanto este, não sei, mas fato é que virão, mesmo que nem sempre eu encarne o cientista no corpo das frases dos outros. Um abraço e até alguma cerveja.

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Já assistiu O Cheiro do Ralo? Dê uma olhada na minha crítica.b

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

bom dia. sinto que o amigo é irreverente. já a minha irreverência é ácida. e hoje estou nos meus piores dias. mas tudo bem. espero que possa escrever uma crítica melhor sobre seus textos outra hora, sendo que me parece que a última coisa que saiu da minha lavra foi a coisa mais triste que já escrevi. um abraço e até mais, cara.

gloria disse...

gostei dos teus vôos de ícaro. os meus, de gaivota. palavras sábias para eduardo. bejim

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Eu só me ergo aos tapas. Mas por vezes finjo sofreres para perseguir o efeito nos outros. Portanto umas doses de whiskey e alguns diazepans me põe sono por algumas horas. No mais, hoje escreve sobre uma senhora chamada Morte, cuja história me caiu nas mãos de vampiro ontem. Não sou tão infeliz assim. Todos os dias o sol nasce. Abraço e ainda tomaremos um barril de chopp discutindo Barthes.