Assim que nascera fora posta na estante. Exposta a todo e qualquer olhar, alvo de julgamentos e projeções. Sempre se saiu bem, a pintura é bem feita, os traços caprichados. É uma boneca de porcelana, mesmo não aceitando ser. Brinquedo não enruga com o passar dos anos, mas perde a beleza com o uso. Brinquedo não tem serventia nas mãos de quem não sabe brincar. Disso ela ainda não sabe.
Se a vida se resume ao que se consegue ver ela teve sorte, pois fora colocada em uma prateleira mais alta. Lá de cima consegue olhar para baixo. Conforta-se ao saber que há níveis inferiores ao dela. Há tantos brinquedos debaixo de seus pés. Nunca conseguirão chegar ao topo. Mesmo sendo brinquedo, consegue abrir a boca. Ela fala e nunca é pouco. Não se sabe de onde surgem as palavras, ou porque são ditas. Os outros brinquedos não sabem ouvir.
É adornada com vestidos, sapatos e jóias. Tudo bonito e caro. Gastam fortunas tentando transformá-la em gente. Mas ela nunca conseguiu andar com as próprias pernas. As vestimentas são trocadas, a beleza apenas muda de ângulo, mas sua posição sempre foi a mesma. Estática na estante, vivendo de acordo com o protocolo, um manual de instruções escrito às pressas.
Desde que nasceu, tem ilusões de movimento. Tem certeza de estar indo aonde quer. É intrigante fitar os olhos de uma boneca maquiada e perceber que ela pensa estar avançando. Gepetto poderia existir, para consertar essa injustiça. Mas não há velho com poderes mágicos, assim como não há boneca que queira deixar de ser boneca. Existem níveis superiores a serem alcançados. Barbies não precisam escalar. Basta agradarem as mãos que as manipulam.
Há tantas vidas de porcelana. Bonecas não deixam de ser gente pelo desejo alheio. Tornam-se objetos por vontade própria. Maquiam com esmero suas facetas. Escondem com elegância suas personalidades. Não perguntam aos cegos o que acham delas. Transformam o mundo em mero espectador da estante onde se encontram. Às vezes, é difícil saber se realmente saímos da loja de brinquedos.