8 de nov. de 2011

QUAL É A FREQUÊNCIA, R.E.M.?



        Houve um tempo - fora do tempo - em que pude ouvir a música do mundo.  Começou como um murmúrio, distante, quase inaudível. Transformou-se na voz mais agradável do meu rádio. Foi um monstro que me fez companhia. Conseguiu ser revelação, mesmo após tantos anos. De alguma forma me entenderam, me ensinaram a ouvir as paisagens, fizeram as pessoas soar. Poderia ser apenas alguns instrumentos invisíveis, mas era mais do que isso. As vozes, sem rostos, e vindas de qualquer lugar, eram marcantes, mas havia mais. As estrofes falavam por mim, os refrões diziam algo sobre todos, sobre um, sobre mim.
        Os reconheci, ganharam cara no constante giro da moeda. Passaram a comentar sobre meus pensamentos. Não tinham medo de me desapontar. Quanto maior era a dúvida, melhores eram suas respostas. Quando parei de duvidar, disseram que eu havia perdido minha religião. Enquanto eu temia cair sob o céu, eles pediam para que o céu não caísse. No final de cada dia, quando não havia qualquer amigo, e nenhum amor, as melodias irretocáveis estavam lá. Em meio ao que sempre parecia ser o fim do mundo, eles eram a alternativa, eram os alternativos. Aquelas posições, tanto dos dedos, quanto políticas, estavam prontas para inspirar quem prestasse atenção.
       Tudo bem, nem sempre o assunto era sério. Com entonação triste, celebraram uma estranha e radiante felicidade. Poucas vezes foi assim. Na verdade, a compreensão não costumava ser automática para as pessoas. Escreveram isso na capa, mas aquelas faixas foram feitas para romper a barreira do óbvio. Quem não sabe que todos ficam tristes nessa vida? Todo mundo sabe que o homem já pisou na lua. Claro, todos sabem. Muitos comentam sobre esses assuntos, mas são poucos que conseguem transformá-los em arte. Eles conseguiram isso com cordas, sopros, baquetas e coração, e eu estava lá para ouvir.
        Estive com eles incontáveis dias, e eles estiveram comigo uma única noite. Noite única. Eu estava cercado de parecidos, estavam todos comigo. Os instrumentos estavam bem visíveis, pude ver a origem das vozes, senti as letras serem atiradas sobre mim. Fiz parte do coro, do som, do show, me tornei música.  Aquela noite eu chorei e não soube dizer porque. Desde então, as voltas que o planeta faz ao redor do sol nunca mais foram as mesmas. Depois do impacto do colapso os instrumentos foram abandonados, as vozes se calaram, as letras não formarão mais estrofes ou refrões. Eles resolveram emudecer e voltar para onde pertencem. Deixaram-nos os ecos de tudo o que fizeram. Esses poderemos ouvir sempre que quisermos, basta nos cobrirmos de nostalgia e saudade.

18 de ago. de 2011

ATRÁS DOS OLHOS

Vivo procurando, morro tentando encontrar. Certo dia, pensei ter achado debaixo das rugas de um senhor que lia jornal na praça. Engano meu, pedi perdão por ter projetado a luz do meu olhar sobre os sulcos de sua pele. Vi todo o tempo da minha vida, multiplicado pelo número de vezes que eu gostaria de viver, agarrado àquele rosto. Fardo pesado, derme sobrecarregada, não era à toa que deslizava em direção ao solo. Não estava lá, talvez teria estado, algumas décadas atrás. Carrego minha lupa de íris azul para todo o canto. Confiro meu gravador dezenas de vezes antes de sair de casa, às vezes ele ouve, mas não grava. Creio possuir apenas esses instrumentos, mesmo sabendo que existem erros que não admiro, e outros que não admito.
Noites atrás achei, mas apenas no sentido de não ter certeza. Parecia estar entrelaçado nos fios dourados do cabelo de uma perdida. Pude sentir o cheiro da descoberta naqueles lábios. Precipitação minha. No início do dia, não havia mais ninguém. Descobri que existem outros iguais a mim, que também procuram. Fui encontrado por alguém que buscava certo rumo. Ela queria uma direção, mas topou com um sentido. Ao repetir alguns enganos concluí que meu pálido termômetro não era defeituoso. Sempre achei estranho, toda vez que era abraçado, ele demorava poucos segundos para indicar uma temperatura absurda. Era só sensibilidade.
Naquela tarde, tive a breve certeza de ter encontrado nos passos de dança de um maluco. Movimentos desajeitados, insanos, era o caos fazendo uma apresentação de luxo. Os dedos da mão direita, em riste, eram a legenda da concentração. A mão esquerda, inquieta, socava o ar e o próprio corpo ao qual estava presa. Acomodei-me no mais alto dos degraus da ingenuidade para assistir aquela coreografia condenada. Aos rodopios, o dançarino foi se aproximando, até parar na minha frente. Pulverizou minha ingenuidade e me fez cair a seus pés, aplaudindo. Mas não estava lá. Quase me fiz acreditar que era, apenas por não ter compreendido a origem da emoção. Lembrei do meu imã, preso no fundo do bolso da camisa. Não é sempre que ele atrai metais.
Era uma madrugada qualquer, jurei ter achado nas ruas desertas da pacata cidade.Todos aqueles indivíduos compartilhando suas solidões únicas nas calçadas. A grandeza escondida no interior das casas de dois cômodos. O horário das organizações e limpezas nunca se repetia. O coração do lugar era um labirinto de caminhos há muito conhecidos. Estava tudo na medida certa, tive tanta certeza de ter encontrado que até entortei meu compasso. Achei que não precisaria mais esquadrinhar nada. Por muito tempo chamei de minha aquela cidade, mas recentemente ela confessou ser livre. Mais um engano para a coleção. Não era lá que eu estava. Não foi lá que me encontrei.

9 de jun. de 2011

VIDA DE PORCELANA


Assim que nascera fora posta na estante. Exposta a todo e qualquer olhar, alvo de julgamentos e projeções. Sempre se saiu bem, a pintura é bem feita, os traços caprichados. É uma boneca de porcelana, mesmo não aceitando ser. Brinquedo não enruga com o passar dos anos, mas perde a beleza com o uso. Brinquedo não tem serventia nas mãos de quem não sabe brincar. Disso ela ainda não sabe.
Se a vida se resume ao que se consegue ver ela teve sorte, pois fora colocada em uma prateleira mais alta. Lá de cima consegue olhar para baixo. Conforta-se ao saber que há níveis inferiores ao dela. Há tantos brinquedos debaixo de seus pés. Nunca conseguirão chegar ao topo. Mesmo sendo brinquedo, consegue abrir a boca. Ela fala e nunca é pouco. Não se sabe de onde surgem as palavras, ou porque são ditas. Os outros brinquedos não sabem ouvir.
É adornada com vestidos, sapatos e jóias. Tudo bonito e caro. Gastam fortunas tentando transformá-la em gente. Mas ela nunca conseguiu andar com as próprias pernas. As vestimentas são trocadas, a beleza apenas muda de ângulo, mas sua posição sempre foi a mesma. Estática na estante, vivendo de acordo com o protocolo, um manual de instruções escrito às pressas.
Desde que nasceu, tem ilusões de movimento. Tem certeza de estar indo aonde quer. É intrigante fitar os olhos de uma boneca maquiada e perceber que ela pensa estar avançando. Gepetto poderia existir, para consertar essa injustiça. Mas não há velho com poderes mágicos, assim como não há boneca que queira deixar de ser boneca. Existem níveis superiores a serem alcançados. Barbies não precisam escalar. Basta agradarem as mãos que as manipulam.
Há tantas vidas de porcelana. Bonecas não deixam de ser gente pelo desejo alheio. Tornam-se objetos por vontade própria. Maquiam com esmero suas facetas. Escondem com elegância suas personalidades. Não perguntam aos cegos o que acham delas. Transformam o mundo em mero espectador da estante onde se encontram. Às vezes, é difícil saber se realmente saímos da loja de brinquedos.